quarta-feira, 16 de outubro de 2024

To be free is all we want to be - Parte 2 de 3

 


Maio de 2011. Amy Winehouse ainda estava viva. Primeiro ano de mandato de Dilma Rousseff.

Estávamos nos sentindo cada vez mais conectados e próximos. Senti que era o momento de arriscar. Se um de nós voltasse a ter um emprego, seria cada vez mais difícil. Calculei quanto custaria pra que ele viesse ao Rio. Resolvi perguntar a ele o que achava da idéia. Decidimos usar nossa pouca reserva financeira, pra passar uma semana juntos. Ainda assim, seria o suficiente, no máximo pra passagem e algumas saídas de baixo custo, por aqui rs. Ainda assim, pedi ajuda a um grande amigo, pra que o Otávio pudesse dormir lá, pois eu ainda morava com meus pais e havia todo aquele cerco homofóbico, ainda que velado e indireto.

Hoje, posso sentir como era ridículo ter que inventar histórias para meus pais, pra receber um " amigo " em casa. Alegamos que ele veio ao Rio pra um evento de anime, em Niterói. Realmente, iríamos ao evento, mas não era o principal motivo rs.

13 de maio de 2011. Como diria Fernando Pessoa, seria um " dia triunfal na minha vida ". Chegou o momento de recebê-lo na rodoviária. Sim, não havia a mínima possibilidade de ele vir de avião. São 17 horas de viagem, dentro de um ônibus, pra vir me encontrar. 

[ É aí que eu lembro: " Pra quem achava que eu tava na pior... pohan! " ]

O ônibus atrasou um pouquinho, além do previsto. Tentei ligar pra ele pra perguntar e o telefone dava fora de área, na região serrana aqui do Rio, a caminho da cidade. Eis que ele desce do ônibus e vem na minha direção. Senti minha alma saindo do corpo, um pouquinho. Não sabia o que falar. E ele, chega quebrando o gelo : " Tava me ligando, bocó? ".

Passado aquele frisson dos minutos iniciais, parecia que já nos conhecíamos, de tanto que conversamos durante um mês. E fomos pra casa dos meus pais, pra deixar a mala dele. Foi aí que eu reparei em algo, que na época, eu achei que fosse algo mágico ou resultado do carisma do Otávio : Meus pais trataram ele como um principe. Perguntaram sobre a vida dele, se interessaram pelas coisas que ele contava. Fiquei pasmo! Bom, ele era branco, sulista, não afeminado. Meu primeiro namorado não era branco e tinha um tom menos heteronormativo. Sem contar que meus pais cismavam que o JJ tinha me " convertido ". Mas que c* de mel, né? Voltando ao assunto...

Um outro parêntese relevante, é que na época, meu metabolismo estava a todo vapor: eu comia muito e tinha no máximo uma pochete de barriga. Eu devia vestir 44, pra terem uma idéia. Minha deficiência, neuro degenerativa, tava em seu estado inicial e praticamente não me impedia de nada. Então, sendo branco, atv e aparentemente hetero normativo, era como se eu pulasse várias etapas na " prateleira". Ainda assim, perto dele, eu me sentia um impostor.

Tivemos nossa primeira vez, já naquele dia. Saímos de um motel e fomos jantar num restaurante. Em seguida, encontraríamos com meu amigo, que iria oferecer hospedagem pro Otávio. Esse meu amigo quis mostrar a Lapa e a noite carioca pro Otávio, que estava pela primeira vez no Rio. Bom, primeiramente sempre me senti velho pra esses eventos, principalmente por ser fraco pra álcool e não gostar de ficar na rua de madrugada. Otávio achou legal o tour e nisso, meu amigo encontra uns conhecidos gays numa praça, nos Arcos da Lapa. Fiquei num canto, conversando com Otávio, perguntando se ele tava se sentindo cansado. Havia todo o desgaste da viagem, etc. Nisso, eu reparo que os conhecidos do meu amigo estavam " secando " o Otávio, de longe. Sem contar as pessoas que passavam. Se eu pudesse, teria materializado uma bolha, estilo Sonic, com insul film. Por sorte, o Otávio disse que estava com sono e foi a deixa pra sairmos daquela armadilha, que ativou todos os meus gatilhos de insegurança rs. Já era por volta de 2h da madrugada e fomos esperar um ônibus pra Zona Norte do Rio. Lembro que tinha uns caras bêbados, puxando assunto, no ponto de ônibus. Não se sabia se eram gays ou não. E quando entramos no ônibus, Otávio encostou no meu ombro e dormiu. Eu passei a olhar em volta e estava pronto pra reagir a qualquer tentativa de ataque, que pudesse ocorrer. Que bom que não aconteceu nada.

Ah, mas que época divisora de águas! Existia violência urbana? Claro que sim. Mas não ainda não tinha acontecido a ruptura social, que ocorreria anos depois, pós golpe na Dilma. Digo isso, porque a casa desse meu amigo era em uma comunidade, que hoje em dia, seria impossível de entrarmos. Até mesmo ele precisou se mudar de lá. E deu tudo certo, dormimos lá, nós 3, em colchões no chão do quarto. Dormi o sono dos justos rs. Quando acordamos, meu amigo já tinha saído pra trabalhar. E lembro de ele dizer pro Otávio " se sentir em casa ". Bom, rolou né? Meu amigo riu e falou que tiramos a virgindade do quarto dele. Que nem ele tinha transado no próprio quarto kkk.Perguntei o que achou do Otávio, e meu amigo comparou o humor dele com o Rei Julian, de Madagascar.

Saímos da casa do meu amigo e voltamos pra casa dos meus pais, até porque ele precisava pegar roupas na mala, que tinha ficado lá. Meus pais chegaram a dar uma saida rápida e o Otávio, hiper responsável, me disse pra não arriscar nada, pra que não corrêssemos o risco de sermos pegos em flagrante e passar por perrengue desnecessário. Vontade não faltou. Colocamos um filme pra assistir. Na época, baixava filmes em Torrent, no desktop. O filme Bruna Surfistinha era recente e acabamos assistindo. Lembro que acendemos umas velas aromáticas ( ok, não transar, mas meus pais verem a gente assistir filme com velas aromáticas, tava liberado? Uhum... ). Pra nossa surpresa, minha mãe perguntou se ele ia dormir lá. Que bom que teve essa abertura! Infelizmente, optamos por ele dormir no sofá da sala. Queria muito que ele dormisse no quarto comigo, mas não deu. Fiquei na porta do quarto, como um psicopata, até que ele dormisse. Tenho uma foto dele dormindo no sofá, até hoje rs.

Ele era um garoto com muita vontade de conhecer as praias do Rio. Mas naquele outono de 2011, praticamente os 5 dias estavam nublados ou chuvosos. Acabamos dormindo num hotel, num desses dias, pra um pouco de privacidade. Fomos assistir o primeiro Thor, no cinema. Ficamos esperando meu amigo no shoppimg, onde ele trabalhava. Ele trabalhava em fechamento de loja. Ficamos esperando, até sermos chamados atenção por seguranças do shopping. Otávio já estava sentado no chão do shopping rs. Acabamos indo embora, voltando pra casa dos meus pais.

Tivemos o evento de anime em Niterói, que foi bem legal. Como estávamos muito sem grana, eu queria gastar e comprar algo de presente pra ele. Acabei comprando, escondido, quando ele foi no banheiro. Levei um sermão na volta, ao dar o presente, que fiquei sem graça. Ele falou que eu poderia esperar esar trabalhando, pra gastar com coisas assim.

Essa era uma grande diferença entre nós. Ele se sentia seguro, conseguia até visualizar nosso relacionamento, ao menos a médio prazo. Eu sentia, diariamente, o som do pó da ampulheta se encaminhando ao fim. Sabia que ia acabar, a qualquer momento. Era uma vibe " Brilho Eterno de uma mente sem lembranças ". 

E chegou o momento que eu queria adiar: Levar ele até a rodoviária. Ele estava super satisfeito, disse que gostou muito desses 5 dias. E eu sabia que, assim que ele fosse embora, eu voltaria a uma rotina muito insuficiente pra mim, naquela época. Pobre de afetos. Ficamos esperando o ônibus, com horário marcado. Nos abraçamos e nos despedimos. Disfarcei, pra parecer ser sereno e maduro. Assim que o ônibus saiu, me lembro de chorar a ponto de sentar no chão. Talvez tenha sido a maior sensação de desamparo, que senti, até aquele momento da vida. Ele, tão protagonista que era, meio que sabia que eu tava disfarçando pra não chorar e me ligou 1 minuto depois, de dentro do ônibus, pra dizer que tudo ficaria bem.

Gostaria muito de acreditar nisso, mas não era minha realidade! E eu precisava anestesiar aquele vazio, aquela dor imensa!

Continua...



6 comentários:

O Gato de Cheshire disse...

Já é minha novela favorita, morrendo de curiosidade pelos desdobramentos. Acho que nossas histórias divergem mais desse capítulo pra frente, embora vc tenha me acionado a memoria da primeira despedida na rodoviária e a certeza absoluta que eu tinha que eu estava vendo ele ali pela última vez.

Outra coisa que me bateu foi uma certa liberdade que a juventude tem pra administrar a escassez... Sei que parece estranho e acho que nem tô conseguindo me expressar muito bem, mas sinto que essa história foi possível como um romance, com vcs passando um perrengue juntos, mas vivendo uma história bacana, pq eram jovens.. Aqui nas adjacências do 40, qual seria a probabilidade de alguém se apaixonar e se dispor a viajar 17 horas de ônibus, dormir em colchonetes na casa de um amigo na periferia, ficar com o boy escondido dos pais e etc?

Acho que muito deu gostar de ficar com pessoas mais novas é o quanto eles se permitem, o quanto se jogam... A gente vai envelhecendo a lista de exigência fica maior, a vida vai ficando mais complexa, mais pesada... Vc traz uma história repleta de homofobia e escassez, mas sob áurea da juventude ela ainda sim soa leve.

O Gato de Cheshire disse...

Lembrei desse clássico! É sobre!

https://youtube.com/shorts/KYk2o3o3iGo?si=aWqJ0UUQ-cxV_e5_

OBS: Eu todo Rafinha Bastos

FOXX disse...

Quero mais capítulos!

Wildeman disse...

Kkkk ri muito

Wildeman disse...

Em breve, camarada!!

Wildeman disse...

É, meu caro. Por isso achei importante contar essa história. Tivemos muitas mudanças na nossa subjetividade. Uma outra questão é muito relevante: nos dias atuais, marcados apenas pela estética e números de seguidores, eu provavelmente não teria chance de sequer conversar com uma pessoa como ele.

 
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